Olive Schreiner

Um sonho sobre abelhas selvagens

(escrito como carta para um amigo)

Uma mãe sentava-se a sós junto a uma janela aberta. Através dessa entravam as vozes das crianças a brincar sob as acácias, e o sopro do vento quente da tarde. Lá e cá voavam as abelhas, abelhas selvagens, com suas pernas amarelas de pólen, indo e voltando das acácias, zumbindo o tempo todo. Ela se encontrava sentada numa cadeira baixa diante da mesa, a cerzir. Pegava seu trabalho da grande cesta à sua frente: algumas peças estendiam-se sobre seu joelho e encobriam parcialmente o livro ali repousado. Ela assistia a agulha entrar e sair; e o zunido monótono das abelhas e o ruído das crianças se tornaram um murmúrio confuso a seus ouvidos, enquanto ela trabalhava mais e mais lentamente. Então as abelhas, daquelas camaradas de longas pernas, que não produzem mel, semelhantes às vespas, voaram mais e mais perto de sua cabeça, zumbindo. Então ela tornou-se mais e mais letárgica, e pousou a mão, com a meia sobre ela, na mesa, e ali recostou a cabeça. E as vozes das crianças lá fora se tornaram mais e mais indistintas, indo e vindo; até que ela não as ouvia, mas sentia sob seu seio onde a nona criança jazia. Recurvada a dormir ali, com as abelhas sobrevoando sua cabeça, lhe acometeu uma estranha figura-mental; ela pensou que as abelhas se esticavam e alongavam e se transformavam em criaturas humanas movendo-se e girando ao seu redor. Até que uma dirigiu-se a ela com gentileza, dizendo, “Deixe-me pousar minha mão sobre vosso flanco, onde a criança dorme. Se eu o tocar ele será como eu.”

Ela perguntou, “Quem é você?”

E ele disse, “Eu sou Saúde. Aquele a quem eu toco terá sempre sangue rubro dançando nas veias; ele não conhecerá fadiga nem dor; a vida lhe será uma longa gargalhada.”

“Não,” disse outro, “deixe-me tocar; pois eu sou Prosperidade. Se eu o tocar penúria não o consumirá. Viverá do sangue e nervos de seus iguais, se assim desejar; e o que seu olho cobiçar, sua mão possuirá. Ele jamais conhecerá ‘eu quero.’” E a criança jazeu imóvel feito chumbo.

E outro disse, “Deixe-me tocá-lo: eu sou Prestígio. O homem tocado por mim, eu guio até uma alta colina onde todos podem vê-lo. Quando morrer ele não é esquecido, seu nome soa pelos séculos, ecoado por seus companheiros. Pense — não ser esquecido através das eras!”

E a mãe repousava com sua respiração inalterada, mas na figura-mental eles a cercavam, aproximando-se.

“Deixe-me tocar a criança,” disse um, “pois eu sou Amor. Se eu tocá-lo ele não caminhará sozinho pela vida. Na mais profunda escuridão, quando ele estender a mão encontrará a de outrem. Quando o mundo voltar-se contra ele, outrem dirá, ‘Tu e eu.’” E a criança estremeceu.

Mas outro ladeou-se e disse, “Deixe-me tocar; pois sou Destreza. Eu posso fazer todas as coisas — que já antes foram feitas. Eu toco o soldado, o homem de estado, o pensador, e o político de sucesso; e o escritor que nunca está atrás ou diante do seu tempo. Se eu tocar a criança ele jamais pranteará qualquer fracasso.”

Ao redor da mãe as abelhas voavam, tocando-a com suas longas perninhas afiadas; e em sua figura-mental, das sombras do cômodo surgiu um ser de face amarelada e enrugada, de bochechas encovadas, e um sorriso trêmulo. Ele estendeu a mão. A mãe encolheu-se, e exclamou, “Quem é você?” Ele nada respondeu; e ela fitou-o nos olhos. E ela disse, “O que você pode oferecer à criança — saúde?” E ele disse, “O homem que eu toco, desperta em seu sangue uma febre abrasadora lhe que consumirá o sangue feito fogo. A febre que lhe darei será curada quando sua vida for curada.”

“Você dá prosperidade?”

Ele balançou a cabeça. “O homem a quem eu toco, quando se abaixa em busca de ouro, vê subitamente uma luz nas alturas do firmamento; quando volta-se para olhar, o ouro escapa por entre seus dedos, ou ainda, outrem passa e o surrupia.”

“Prestígio?”

Ele respondeu, “Improvável. Para o homem que eu toco há um caminho traçado na areia por um dedo que ninguém vê. Essa é a trilha que ele deve seguir. Por vezes ela o conduz até próximo ao topo, e então abruptamente inclina-se vale abaixo. Ele deve segui-la, mesmo que ninguém mais enxergue o rastro.”

“Amor?”

Ele disse, “Ele ansiará por amor — mas nunca o encontrará. Quando estender os braços, e oferecer seu coração à criatura amada, então, no remoto horizonte verá uma luz cintilar. Ele deve ir em direção a ela. A criatura amada não partirá com ele; ele deve viajar a sós. Quando ele premer seu bem-querer a seu fervoroso coração, exclamando, ‘meu amor, minha estima!’ ele ouvirá uma voz — ‘Renuncie! renuncie! isso não vos pertence!”

“Ele terá sucesso?”

Ele disse, “Ele fracassará. Quando embarcar em jornadas com outros eles alcançarão o destino antes dele. Pois estranhas vozes lhe invocarão, e ele deve esperar e escutar. E o mais estranho de tudo será: ao longe, do outro lado das areias escaldantes onde, para outros homens, há apenas a desolação do deserto, ele verá um mar azul! Nesse mar o sol sempre brilha, e as águas são azuis como ametistas em chamas, e a espuma é branca no litoral. Terras grandiosas se assomam ali, e ele verá ouro chamejante por sobre os cumes.”

A mãe disse, “Ele os alcançará?”

E ele sorriu curiosamente.

Ela disse, “Isso é real?”

E ele disse, “O que é real?”

E ela contemplou-lhe os olhos semicerrados e disse, “Toque.”

E ele inclinou-se e pousou a mão sobre o que dormia, e sussurrou-lhe, sorrindo; e apenas isso ela pôde ouvir — “Essa será vossa recompensa — que o ideal vos seja real.”

E a criança estremeceu; enquanto a mãe continuou a dormir profundamente e sua figura-mental se esvaneceu. Mas em suas entranhas a criatura antenatal que ali jazia teve um sonho. Naqueles olhos que jamais haviam visto o dia, naquele cérebro inacabado estava uma sensação de luz! Luz — que nunca havia visto. Luz — que talvez nunca chegasse a ver. Luz — que existia em algum lugar!

E já então tinha sua recompensa: o Ideal lhe era real.

Referência do conto em inglês

SCHREINER, O. A dream of wild bees. In: SCHREINER, O. Dreams. Urbana, Illinois: Project Gutenberg, 1998. Disponível em: https://gutenberg.org/ebooks/1439.

Primeira publicação – The Woman’s World v.2 (1889).

Um comentário sobre a tradução

Essa foi a primeira obra de Schreiner traduzida durante meu mestrado. Desde a escrita no projeto, antes do processo seletivo, essa alegoria em particular me encantava, talvez pelas abelhas (animais que adoro) ou pela elisão entre real e ideal proposta pelo ancião.

O processo de tradução teve alguns impasses significativos: o primeiro foram os pronomes que fazem referência às abelhas e às criaturas, já que, ao contrário do português, substantivos não tem gênero em inglês; as abelhas originalmente são apenas “they/them”, mas em português são “elas”; as criaturas são “he/him” no original, e “ele” na tradução. No fim das contas, a distinção dos pronomes evidenciou a transformação desses seres no mundo dos sonhos.

Optei por não traduzir todos os dons da forma mais literal. Saúde (Health) e Amor (Love) foram literais, porque em português são palavras que compreendem conceitos abstratos. Já Prosperidade (Wealth), Prestígio (Fame) e Destreza (Talent) optei pelas versões mais formais, que são mais abstratas, porque, na minha concepção, “fama” e “talento” são palavras corriqueiras. O termo “riqueza” ainda compreende bem o dom no modo abstrato, mas como se trata de uma forma expansiva e atemporal de riqueza, optei por usar Prosperidade.

Mas o impasse mais interessante foi o apoteótico “that the ideal shall be real to thee”. Essa é uma citação do ensaio The Poet, 

 

escrito por Ralph Waldo Emerson, um dos pensadores favoritos de Schreiner. Esse ensaio nunca foi traduzido para o português, então me coube descobrir a melhor versão da afirmação.

Trabalhei com quatro opções: “que o ideal seja real para vós”, “que o ideal vos seja real”, “que o ideal vos será real” e “que o ideal será real para vós”. O pronome “vós” foi escolhido como equivalente ao “thee”, menos por igualdade gramatical e mais por serem pronomes tradicionalmente usados para se referir ao Deus bíblico em inglês e português modernos; a primeira opção foi descartada porque transpõe mais acuradamente “that the ideal becomes real to thee”; já as duas últimas opções foram descartadas por estarem no futuro (apesar de a frase original ter “shall be” como verbo principal, esse parece se referir a uma espécie de temporalidade abrangente, não ao futuro cronológico expresso por “será”). A segunda opção foi escolhida por expressar essa temporalidade de forma mais acertada, através da partícula “Que”, e pela ambiguidade do verbo “seja”, que é tanto imperativo (contendo aí a ordem, ou maldição, dada ao bebê) e presente do subjuntivo, fazendo a ação ser presente e futura, como um desejo.

 
Por fim, deixo aqui agradecimento especial ao Prof. Me. Davi Oliveira, que revisou essa tradução e se dispôs a debater os impasses comigo.

Mª Lua Albus, 2023


A dream of wild bees é uma obra em Domínio Público. Essa tradução foi realizada como parte de um projeto de pesquisa financiado pela CAPES. Nenhum ganho financeiro ou material foi obtido através dessa tradução. A obra traduzida e respectivo comentário sobre a tradução podem ser compartilhados e adaptados sob os termos da licença Atribuição-Compartilha-Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

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