Enquanto eu viajava por uma planície africana, o sol brilhava intensamente. Então, apeei meu cavalo sob um pé de mimosa, tirei-lhe a sela e deixei-o a pastar entre os arbustos ressequidos. E à direita e à esquerda estendia-se a terra castanha. E sentei-me debaixo da árvore, pois o calor batia forte e o ar vibrava ao longo de todo o horizonte. Passado algum tempo, uma sonolência pesada se abateu sobre mim, e encostei a cabeça à minha sela e adormeci ali. E, enquanto dormia, tive um sonho curioso.
Parecia que estava na fronteira de um grande deserto, e a areia soprava por toda parte. E pareceu-me ver duas grandes figuras como bestas de carga do deserto, e uma estava deitada na areia com o pescoço esticado, e a outra estava ao seu lado. E olhei com curiosidade para a que estava deitada no chão, porque tinha um grande fardo às costas, e a areia era espessa à sua volta, de modo que parecia ter sido empilhada sobre ela durante séculos.
E eu olhava-a com muita curiosidade. E estava alguém ao meu lado observando. E eu perguntei-lhe: “O que é esta criatura enorme que jaz aqui na areia?”
E ele disse: “Essa é a mulher; aquela que carrega homens em seu corpo.”
E eu perguntei: “Por que ela está aqui imóvel com a areia à sua volta?”
E ele respondeu: “Escutai, eu digo-te! Há séculos e séculos que ela jaz aqui, e o vento soprou sobre ela. O mais, mais, mais velho homem vivo nunca a viu mexer-se: o mais, mais velho livro registra que ela jazia aqui então, como jaz agora, com a areia à sua volta. Mas escutai! Mais antigo do que o livro mais antigo, mais antigo do que a mais antiga memória registrada do homem nas Rochas da Linguagem, no barro cozido dos Costumes Antigos, agora a desmoronar em ruínas, encontram-se as marcas dos seus passos! Lado a lado com as dele, que está ao seu lado, tu podes rastreá-las; e tu compreendes que aquela que agora jaz ali, uma vez vagou livremente sobre as rochas com ele.”
E eu perguntei: “Por que ela jaz ali agora?”
E ele disse: “Presumo que, há muito tempo, a Era-da-força-muscular a encontrou e, quando ela se abaixou para dar de mamar aos seus filhotes, e suas costas eram largas, ele colocou seu fardo de sujeição sobre ela e o prendeu com a grossa corda da Necessidade Inevitável. Então ela olhou para a terra e para o céu, e soube que não havia esperança para ela; e deitou-se na areia com o fardo que não conseguia afrouxar. Desde então, jaz aqui. E as eras vieram, e as eras se foram, mas a corda da Necessidade Inevitável não foi cortada.”
E eu a olhei e vi em seus olhos a terrível paciência dos séculos; o chão estava molhado com as suas lágrimas, e as suas narinas sopravam a areia.
E eu perguntei: “Ela alguma vez tentou mover-se?”
E ele disse: “Por vezes, um membro tremeu. Mas ela é sábia; ela sabe que não pode levantar-se com o fardo sobre ela.”
E eu perguntei: “Por que aquele que está ao lado dela não a deixa e vai embora?”
E ele disse: “Ele não pode. Olhai—”
E eu vi uma grossa corda passando pelo chão entre um e outro, unindo-os.
Ele disse: “Enquanto ela estiver ali, ele deve permanecer e olhar para o deserto.”
E eu perguntei: “Ele sabe por que não consegue mexer-se?”
E ele disse: “Não.”
E eu ouvi um som de algo estalar, e olhei, e vi a corda que prendia o fardo às costas dela partir-se; e o fardo rolou para o chão.
E eu perguntei: “O que aconteceu?”
E ele disse: “A Era-da-força-muscular está morta. A Era-da-força-nervosa matou-a com a faca que tem na mão; e silenciosa e invisivelmente arrastou-se até à mulher, e com essa faca de Invenção Mecânica cortou a corda que ligava o fardo às costas dela. A Necessidade Inevitável foi quebrada. Ela pode levantar-se agora”.
E eu vi que ela continuava imóvel na areia, com os olhos abertos e o pescoço esticado. E parecia procurar algo na fronteira longínqua do deserto que nunca alcançava. E perguntei-me se estaria acordada ou dormindo. E enquanto eu olhava, o seu corpo estremeceu, e uma luz brilhou em seus olhos, como quando um raio de sol entra num quarto escuro.
Eu indaguei: “O que aconteceu?”
Ele sussurrou: “Silêncio! Veio-lhe o pensamento: ‘Será que não posso me levantar?’”
E eu olhei. E ela levantou a cabeça da areia, e eu vi a mossa onde o seu pescoço tinha ficado tanto tempo. E ela olhou para a terra, e olhou para o céu, e olhou para aquele que estava ao seu lado: mas ele olhava para o deserto.
E eu vi o seu corpo estremecer; e ela pressionou os joelhos contra a terra, e suas veias sobressaíram-se; e eu exclamei: “Ela vai levantar-se!”
Mas apenas os seus flancos agitaram-se, e ela ficou imóvel onde estava.
Mas a sua cabeça manteve-se erguida; não a prostrou novamente. E aquele que estava ao meu lado disse: “Ela está muito fraca. Vês, as pernas dela estiveram esmagadas debaixo dela tanto tempo.”
E vi a criatura debater-se, e o suor porejava nela.
E eu perguntei: “Certamente o que está ao seu lado vai ajudá-la?”
E aquele que estava ao meu lado respondeu: “Ele não a pode ajudar: ela deve ajudar a si própria. Deixe-a lutar até ficar forte.”
E eu clamei: “Pelo menos ele não a vai atrapalhar! Vê, ele afasta-se dela, e aperta a corda entre eles, e arrasta-a para baixo.”
E ele respondeu: “Ele não entende. Quando ela se move, puxa a corda que os une e machuca-o, e ele afasta-se mais dela. Chegará o dia em que ele compreenderá e saberá o que ela está fazendo. Deixe-a cambalear e ficar de joelhos. Nesse dia, ele se aproximará dela e olhará em seus olhos com simpatia.”
E ela esticou o pescoço, e as gotas de suor pingaram dela. E a criatura levantou-se um centímetro da terra e tornou a afundar-se.
E eu clamei: “Oh, ela está demasiado fraca! Não consegue andar! Os longos anos tiraram-lhe toda a força. Será que nunca vai se mover?”
E ele respondeu-me: “Vê a luz em seus olhos!”
E lentamente a criatura cambaleou até ficar de joelhos.
E eu acordei: e a leste e a oeste estendia-se a terra estéril, com os arbustos secos sobre ela. As formigas corriam para cima e para baixo na areia vermelha, e o calor batia ferozmente. Olhei para o céu azul por entre os ramos finos da árvore. Espreguicei-me e pensei no sonho que havia tido. E voltei a adormecer, com a cabeça na sela. E, no calor intenso, tive outro sonho.
Vi um deserto e vi uma mulher saindo dele. E ela chegou à margem de um rio escuro; e a margem era íngreme e alta. (As margens dos rios africanos têm, por vezes, cem pés de altura e consistem em areias profundas e movediças, através das quais, no decurso dos tempos, o rio erodiu seu leito gigantesco). E aí encontrou-se com ela um ancião de longas barbas brancas; tinha na mão um cajado cheio de nós em que estava escrito Razão. E ele perguntou-lhe o que queria; e ela disse: “Sou mulher; e procuro a terra da Liberdade.”
E ele disse: “Está diante de ti.”
E ela disse: “Não vejo nada diante de mim, a não ser um rio escuro e caudaloso, e uma margem íngreme e alta, e cortes aqui e ali com areia grossa.”
E ele disse: “E para além disso?”
Ela disse: “Não vejo nada, mas às vezes, quando sombreio os olhos com a mão, acho que vejo na margem mais distante árvores e colinas, e o sol brilhando sobre elas!”
Ele disse: “Essa é a Terra da Liberdade.”
Ela disse: “Como eu chego lá?”
Ele disse: “Há um caminho, e apenas um. Pelas margens do Trabalho, através das águas do Sofrimento. Não há outro.”
Ela perguntou: “Não há nenhuma ponte?”
Ele respondeu. “Nenhuma.”
Ela perguntou: “A água é profunda?”
Ele respondeu: “Profunda.”
Ela perguntou: “O leito está gasto?”
Ele disse: “Está. O teu pé pode escorregar a qualquer momento e pode assim estar perdida”.
Ela perguntou: “Já alguém atravessou?”
Ele disse: “Alguns tentaram!”
Ela perguntou: “Há algum rastro que mostre onde é a melhor travessia?”
Ele disse, “Isso ainda tem de ser feito.”
Ela sombreou os olhos com a mão e disse: “Eu vou.”
E ele disse: “Deves tirar as roupas que usaste no deserto: elas serão arrastadas se entrares na água assim vestida”.
E ela jogou alegremente longe de si o manto de Opiniões-antigas que usava, pois estava gasto e cheio de buracos. E tirou da cintura o cinto que tanto estimara, e as traças voaram dele numa nuvem. E ele disse: “Tire os sapatos da dependência dos teus pés”.
E ela ficou ali nua, exceto por uma veste branca que se agarrava a ela.
E ele disse: “Isso podes manter. Assim são as roupas na Terra da Liberdade. Na água, elas boiam; sempre flutuam.”
E vi que no peito dela estava escrito Verdade; e era branco; o sol não tinha brilhado muitas vezes sobre ele; as outras roupas tinham-no coberto. E ele disse: “Tome esse cajado; segura-o bem. No dia em que ele escorregar de tua mão, estarás perdida. Coloca-o diante de ti; sente o teu caminho: onde ele não encontrar um fundo, não ponhas o teu pé.”
E ela disse: “Estou pronta; deixa-me ir.”
E ele disse: “Não, mas espere; o que é isso no teu peito?”
Ela ficou em silêncio.
Ele disse: “Abre e deixa-me ver”.
E ela abriu-o. E contra o seu peito estava uma coisinha minúscula, que bebia dele, e os caracóis amarelos acima da sua testa pressionavam contra a pele; e os seus joelhos estavam dobrados contra ela, e ele segurava o seu seio com as mãos.
E Razão disse: “Quem é ele, e o que está fazendo aqui?”
E ela disse: “Vê suas pequenas asas…”
E Razão disse: “Ponha-o no chão.”
E ela disse: “Ele dorme, e está mamando! Vou levá-lo para a Terra da Liberdade. Ele é uma criança há tanto, tanto tempo, todo o tempo que eu o carreguei. Na Terra da Liberdade ele será um homem. Caminharemos juntos, e as suas grandes asas brancas cobrir-me-ão. Ele só me disse uma palavra no deserto: ‘Paixão!’ Eu sonhei que ele poderia aprender a dizer ‘Amizade’ naquela terra.”
E Razão disse: “Ponha-o no chão!”
E ela disse: “Eu o carregarei assim — com um braço, e com o outro lutarei contra a água.”
Ele disse: “Deita-o no chão. Quando estiveres na água, vais esquecer-te de lutar, só vais pensar nele. Deita-o no chão”. Ele disse: “Ele não morrerá. Quando vir que o deixaste sozinho, abrirá as asas e voará. Estará na Terra da Liberdade antes de ti. Aqueles que chegarem à Terra da Liberdade, a primeira mão que virem estendida na margem para ajudá-los será a do Amor. Nessa altura, ele será um homem, não uma criança. No teu seio ele não pode prosperar; coloca-o no chão para que ele possa crescer.”
E ela tirou o seio da boca dele, e ele mordeu-a, de modo que o sangue escorreu para o chão. E ela deitou-o na terra; e cobriu a sua ferida. E inclinou-se e acariciou-lhe as asas. E vi que os cabelos da sua testa se tornaram brancos como a neve, e ela tinha mudado da juventude para a velhice.
E ela permaneceu longe, na margem do rio. E disse: “Para que eu vou para esta terra longínqua, aonde nunca ninguém chegou? Oh, estou só! Estou completamente só!”
E Razão, aquele ancião, disse-lhe: “Silêncio! O que é que estás ouvindo?”
E ela escutou atentamente, e disse: “Ouço um som de pés, mil vezes dez mil, e milhares de milhares, e eles correm nessa direção!”
Ele disse: “São os pés daqueles que te seguirão. Vai à frente! Faz um caminho até à beira da água! Onde tu estás agora, o chão será batido por dez mil vezes dez mil pés”. E ele disse: “Já viste como os gafanhotos atravessam um riacho? Primeiro, um desce até à beira da água e é arrastado, depois vem outro, depois outro, depois outro e, por fim, com os seus corpos empilhados, constrói-se uma ponte e os outros passam”.
Ela disse: “E, dos que chegam primeiro, alguns são arrastados e não se ouve falar mais deles; os seus corpos nem sequer constroem a ponte?”
“E são arrastados, e não se ouve falar mais deles — e o que há com isso?”, disse ele.
“E o que há com isso—?”, disse ela.
“Eles fazem uma trilha até à beira da água.”
“Eles fazem uma trilha até à beira da água—” E ela disse: “Por essa ponte que será construída com os nossos corpos, quem passará?”
Ele disse: “Toda a raça humana.”
E a mulher agarrou seu cajado.
E eu vi-a virar naquele caminho escuro para o rio.
E eu acordei; e à minha volta estava a luz amarela da tarde: o sol poente iluminava os ramos dos arbustos de avelós; e o meu cavalo estava ao meu lado alimentando-se calmamente. E eu virei-me de lado e vi as formigas correndo aos milhares na areia vermelha. Pensei em seguir o meu caminho — a tarde estava mais fresca. Então, a sonolência voltou a apoderar-se de mim, recostei a cabeça e adormeci.
E sonhei um sonho.
Sonhei que via uma terra. E nas colinas caminhavam mulheres corajosas e homens corajosos, de mãos dadas. E olhavam nos olhos um do outro, e não tinham medo.
E vi que as mulheres também davam as mãos umas às outras.
E eu perguntei àquele ao meu lado: “Que lugar é esse?”
E ele respondeu: “Isso é o paraíso”.
E eu perguntei: “Onde é que ele está?”
E ele respondeu: “Na terra”.
E eu perguntei: “Quando essas coisas acontecerão?”
E ele respondeu: “NO FUTURO.”
E eu acordei, e à minha volta estava a luz do pôr do sol; e nas colinas baixas o sol estava posto, e um delicioso frescor tinha-se infiltrado em tudo; e as formigas estavam indo lentamente para casa. E eu caminhei em direção ao meu cavalo, que estava calmamente alimentando-se. Então, o sol escondeu-se atrás das colinas, mas eu sabia que no dia seguinte ele voltaria a nascer.
SCHREINER, Olive. Three dreams in a desert. In: SCHREINER, Olive. Dreams. Urbana, Illinois: Project Gutenberg, 1998. Disponível em: https://gutenberg.org/ebooks/1439.
Primeira publicação – The Fortnightly Review v. 48 (August 1887).
Essa foi a alegoria decisiva para minha hipótese interpretativa na dissertação de mestrado. Foi nela que me atentei ao o uso incomum (e um pouco caótico) que Schreiner faz de pronomes e nomes nas alegorias.
Essa característica foi justamente o maior impasse da tradução, já que em português somos no geral treinados para evitar repetição de elementos dêiticos (como nomes e pronomes!); a solução veio quando, com o desenho da hipótese, resolvi evidenciar essa repetição e as elisões narrativas que ela proporciona.
Dessa vez, devo um agradecimento especial a Paula Regina Costi, que revisou essa tradução.
— Mª Lua Albus, 2024
Three dreams in a desert é uma obra em Domínio Público. Essa tradução foi realizada como parte de um projeto de pesquisa financiado pela CAPES. Nenhum ganho financeiro ou material foi obtido através dessa tradução. A obra traduzida e respectivo comentário sobre a tradução podem ser compartilhados e adaptados sob os termos da licença Atribuição-Compartilha-Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).