Olive Schreiner

O caçador

Havia, em um certo vale, um caçador. Dia após dia, ele saía para a floresta, à caça de aves selvagens, e quis o destino que em certa feita ele alcançasse as margens de um grande lago. Enquanto aguardava, à espreita entre os juncos, uma enorme sombra o encobriu, e sobre as águas ele viu um reflexo. Seus olhos se voltavam para o céu; mas a criatura havia desaparecido. Ele foi, então, arrebatado pelo desejo de ver novamente aquele reflexo, e por todo o dia esperou e vigiou; mas a noite caiu e a criatura não havia retornado. Assim, ele foi para casa com sua sacola vazia, taciturno e silencioso. Seus companheiros o questionaram, mas ele não os respondeu; sentou-se sozinho e ensimesmado. Mas, quando seu amigo chegou, com ele o caçador conversou.

“Hoje eu vi,” ele disse, “algo que nunca antes vi— um grandioso pássaro branco, com suas asas de prata abertas, navegando pelo infinito azul. E agora é como se um grande fogo queimasse em meu peito. Tudo não passou de um brilho, um reflexo na água; mas agora o que eu mais desejo no mundo é possuí-la.”

Seu amigo riu-se.

“Não deve ter passado de uma luz cintilando na água, ou a sombra de tua própria cabeça. Amanhã tu vais a esquecê-la,” ele disse.

Mas o amanhã veio, e o amanhã do amanhã, e no amanhã desse, o caçador perambulava sozinho. Ele buscava na floresta e nas matas, pelos lagos e entre os juncos, mas não a encontrava. Ele não mais abatia aves selvagens; afinal, que significado elas tinham para ele?

“O que o aflige?” disseram seus companheiros.

“Está louco,” disse um.

“Não; mas algo pior o acomete,” disse outro; “ao ver algo que nenhum de nós chegou a ver, ele tornar-se-á um virtuoso.”

“Venham, vamos renunciar à sua companhia,” disseram todos.

Assim, o caçador caminhava só.

Uma noite, enquanto vagava pela sombra, pranteando o sofrimento de seu coração, um ancião apareceu-lhe, mais imponente e alto que os filhos dos homens.

“Quem és tu?” perguntou o caçador.

“Sou Sabedoria,” respondeu o ancião; “mas alguns homens chamam-me Conhecimento. Toda minha vida cresci nesses vales; mas nenhum homem me enxerga até que tenha sofrido abundantemente. Para contemplar-me, os olhos devem ser lavados com lágrimas; e de acordo quanto um homem tenha sofrido, eu lhe falo.”

E o caçador clamou:

“Oh, tu que por tão longo tempo tens vivido, o que é o grandioso pássaro que vi navegando pelo azul? Tentaram fazer-me acreditá-la um sonho; a sombra de minha própria cabeça.”

O ancião sorriu.

“Seu nome é Verdade. Aquele que uma vez a viu, nunca mais repousa. Até a morte, ele a deseja.”

E o caçador suplicou:

“Oh, diga-me onde posso encontrá-la.”

Mas o ancião disse:

“Tu não sofreste o suficiente,” e partiu.

Então, o caçador tirou de seu seio a lançadeira da Imaginação, e com ela fiou o fio de seus Desejos; e por toda a noite ele sentou-se e teceu uma rede.

Pela manhã ele depôs a áurea rede por sobre o solo, e nela lançou alguns grãos de credulidade, os quais seu pai lhe havia deixado como herança, e que guardava no bolso de sua camisa. As sementes eram brancas, arredondadas e macias como as sementes do dente-de-leão, e quando esmagadas, assopravam no ar um pó marrom. Então ele sentou-se para ver o que aconteceria. O primeiro a cair na rede foi um pássaro branco como neve, com olhos como de uma pomba, e a cantar uma bela canção— “Um humano-Deus! Um humano-Deus! Um humano-Deus!” ele cantava. O segundo a cair era escuro e místico, com olhos sombrios e encantadores, que enxergavam até as profundezas da alma, e cantava apenas— “Imortalidade!”

E o caçador tomou ambos em seus braços, e disse—

“Esses são sem dúvida da bela família da Verdade.”

E depois veio outro, verde e dourado, a cantar numa voz aguda, feito os gritos dos vendedores no mercado,— “Recompensa após a Morte! Recompensa após a Morte!”

E ele disse—

“Tu não és tão belo quanto os demais, mas é belo também,” e o tomou nos braços.

E ainda outros vieram, com suas penugens de cores vivas, e seus cantos tão prazerosos, até que todos os grãos foram consumidos. E o caçador juntou todos os seus pássaros, e construiu uma gaiola do ferro mais forte chamado nova crença, onde colocou seus pássaros.

Em seguida vieram as pessoas, cantando e dançando.

“Oh, afortunado caçador!” eles clamavam, “Oh, homem maravilhoso! Oh, graciosos pássaros! Oh, encantadoras canções!”

Nenhum deles perguntou de onde vieram os pássaros, ou como tinham sido capturados; mas dançavam e cantavam perante eles. E o caçador estava feliz, pois disse:

“Sem dúvidas Verdade está entre eles. A seu tempo, ela mudará suas penas, e eu a verei em sua forma alva como a neve.”

Entretanto, o tempo passou, e as pessoas cantaram e dançaram; mas o coração do caçador pesou. Ele caminhou sozinho, como outrora, para chorar; o terrível desejo tinha mais uma vez acordado em seu seio. Um dia, quando sentava-se à sós a chorar, aconteceu de Sabedoria encontrá-lo. Ele contou ao ancião o que tinha feito.

E Sabedoria sorriu melancolicamente.

“Muitos homens,” ele disse, “já armaram essa rede para Verdade; mas nunca a encontraram. Dos grãos da credulidade ela não se alimenta; na rede dos desejos seus pés não podem ser presos; no ar desses vales ela não respira. Os pássaros que capturaste são da raça das Mentiras. Belas e encantadoras, mas ainda mentiras; Verdade não as conhece.”

E o caçador suplicou, cheio de amargor—

“E eu devo sentar-me inerte, para ser devorado por essa brasa ardente?”

E o ancião disse,

“Ouça, já que tanto sofreste e choraste, te direi aquilo que sei. Aquele que parte em busca da Verdade deve deixar esses vales da superstição para todo sempre, levando consigo nada do que possuiu. Sozinho deve vagar caminho abaixo, até as Terras da Absoluta Negação e Recusa; ali, deve habitar; ali, deve resistir às tentações; quando a aurora raiar, deve se erguer e seguir até o país da árida radiância. As montanhas de austera realidade erguer-se-ão diante dele; ali, deve escalá-las; para além delas encontra-se Verdade.”

“E ele a terá em seus braços! Ele a segurará em suas mãos!” o caçador exclamou.

Sabedoria balançou a cabeça.

“Ele jamais a verá, jamais a tocará. Ainda não é tempo.”

“Não há qualquer esperança?” implorou o caçador,

“Há algo,” disse Sabedoria: “Já alguns homens escalaram essas montanhas; por sobre círculos e círculos de rochas nuas se alçaram; e, vagando por esses cumes, houveram os que sucederam de encontrar no chão uma pena platinada, caída de uma asa da Verdade. E ocorrerá,” disse o ancião, erguendo-se, profeticamente apontando um dedo para os céus, “e ocorrerá, que quando a quantidade suficiente dessas penas for coletada pelas mãos dos homens, e forem trançadas em um cordão, e o cordão numa rede, que nessa rede Verdade poderá ser capturada. Apenas Verdade pode conter Verdade.”

O caçador ergueu-se. “Assim sendo, eu partirei,” ele disse.

Mas Sabedoria o deteve,

“Atenta-te— aquele que deixa esses vales nunca retorna. Mesmo que, distante, chore lágrimas de sangue por sete dias e noites, ele jamais porá seus pés aqui. Partir— partir é para todo o sempre. A estrada que caminharás não oferece qualquer recompensa. Aquele que parte, parte por livre e espontânea vontade— pela vontade do grande amor que detém em si. O trabalho é a sua recompensa.”

“Eu parto,” disse o caçador; “mas, por sobre as montanhas, diga-me, qual caminho devo escolher?”

“Sou cria do Conhecimento-Acumulado-das-Eras,” disse o ancião. “Posso caminhar apenas onde muitos homens andaram. Nas montanhas poucos pés pisaram; cada homem deve cortar uma trilha para si mesmo. Ele que parte, o faz sob seu próprio juízo: minha voz não mais ouvirá. Eu poderei segui-lo, mas não precedê-lo.”

Então, Conhecimento desapareceu. 

E o caçador virou-se. Ele foi até sua gaiola, e com as próprias mãos destruiu as barras, o ferro denteado rasgando sua carne. Há momentos em que construir é mais fácil do que destruir.

Um a um ele tomou os pássaros e os deixou voar. Mas quando chegou a vez do pássaro de penas negras ele segurou-o, mirando seus belos olhos, e o pássaro cantou seu grave, profundo clamor— “Imortalidade!”

E o caçador disse prontamente: “Não posso separar-me desse. Não é pesado; não come. Vou escondê-lo em meu peito; o levarei comigo.” E ali abrigou o pássaro, e o cobriu com sua capa.

Mas aquilo que havia ocultado tornava-se mais e mais e mais pesado— até que prensava em seu peito como chumbo. Ele não podia mais caminhar. Não podia deixar aqueles vales carregando-o. Assim, novamente tomou o pássaro e o olhou.

“Oh, meu belíssimo! Meu bem querer!” ele clamou, “como não poderei sustentar-te?”

Abriu suas mãos tristemente.

“Vá!” ele disse. “Talvez na canção da Verdade haja uma nota como a tua; mas eu jamais a escutarei.”

Pesaroso, abriu as mãos, e o pássaro voou, escapando para sempre.

Então, da lançadeira da Imaginação ele removeu o fio de seus desejos, e os atirou ao chão; e a lançadeira vazia guardou em seu bolso, pois o fio havia sido confeccionado naqueles vales, mas a lançadeira vinha de terras desconhecidas. Virou-se para partir, mas o povo juntou-se ao redor dele, queixando-se.

“Tolo, miserável, lunático demente!” eles bradavam. “Como te atreves a destruir tua gaiola e deixar os pássaros fugirem?”

O caçador falava; mas eles não podiam escutá-lo.

“Verdade! Quem é ela? Pode por acaso comê-la? Bebê-la? Quem há de tê-la visto? Teus pássaros eram reais: todos podiam ouvi-los cantar! Oh, tolo! Vil réptil! Ateu!” eles gritavam, “tu profanas o próprio ar.”

“Vamos, vamos catar pedras e apedrejá-lo,” chamaram alguns.

“O que há convosco?” disseram outros. “Deixem o idiota,” e foram-se embora. Mas o restante juntou pedras e lama, e atirou-as contra o caçador. Por fim, ferido e sangrando, ele arrastou-se até a mata. A noite caía ao seu redor.

Ele caminhou e caminhou, e as sombras se adensavam. Estava agora na fronteira das terras onde a noite é eterna. Atravessada a fronteira, viu que ali não havia luz alguma. Com suas mãos, tateou; mas cada galho tocado se quebrava, e o solo estava coberto de cinzas. A cada passo seus pés afundavam, e uma fina névoa de borralho atingia seu rosto; e tudo era escuro. Portanto sentou-se numa pedra e enterrou o rosto nas mãos, para esperar pela luz nas Terras da Absoluta Negação e Recusa.

E era noite também em seu coração.

Naquele ponto, dos pântanos ao seu redor ergueu-se um nevoeiro cerrado que o envolveu. Uma chuva fina, imperceptível, caiu na escuridão, e gotas acumularam-se em seus cabelos e roupas. Seu coração batia lentamente, e um embotamento tomou conta de seus membros. Então, no alto, duas rajadas de luz surgiram dançando alegremente. Ele ergueu a face para olhá-las. Mais e mais perto elas vinham. Tão cálidas, tão brilhantes, elas dançavam como estrelas em brasa. Elas estavam à sua frente, finalmente. No centro de uma chama radiante estava o rosto de uma mulher, risonha, com covinhas e longos cabelos amarelos. No centro da outra, estavam ondulações risonhas, como bolhas numa taça de vinho. Elas dançavam diante dele.

“Quem sois vós,” perguntou o caçador, “que vindes a mim em minha solidão e escuridão?”

“Somos as gêmeas Sensualidade,” elas exclamaram. “Nosso pai chama-se Natureza-Humana, e nossa mãe chama-se Excesso. Somos tão anciãs quanto os montes e os rios, tão anciãs quanto o primeiro homem; mas nunca morremos,” elas riram.

“Ah, deixe-me pôr meus braços ao teu redor!” exclamou a primeira; “são macios e cálidos. Teu coração está agora congelado, mas eu o farei bater. Oh, venha a mim!”

“Eu verterei minha vitalidade ardente em ti,” disse a segunda; “teu cérebro está dormente, e teus membros estão agora mortos; mas eles reviverão livres e intrépidos. Ah, deixe-me verter em ti!”

“Ah, siga-nos,” elas clamaram, “e viva conosco. Corações mais nobres que o teu sentaram-se aqui na escuridão a esperar, e vieram a nós, e nós a eles; e eles nunca nos deixaram, nunca. Tudo mais é desilusão, mas nós somos reais, reais, nós somos reais. Verdade é uma sombra; os vales da superstição são uma farsa: terra de cinzas, árvores apodrecidas; mas nós— toque-nos— nós vivemos! Tu não podes duvidar de nós. Sinta como somos cálidas! Ah, venha a nós! Venha conosco!”

Mais e mais perto de sua cabeça elas rondavam, e as gotas geladas derretiam em sua testa. A luz incandescente penetrava seus olhos, deixando-o tonto, e seu sangue congelado começou a correr. E ele disse:

“Sim, por que deveria eu morrer nessa terrível escuridão? Elas são cálidas, elas derretem meu sangue congelado!” e ele estendeu as mãos para tomá-las para si.

Quando nesse momento surgiu diante de si a imagem daquilo que amara, e sua mão abaixou.

“Ah, venha a nós!” elas chamaram.

Mas ele escondeu o rosto.

“Vós ofuscais meus olhos,” ele exclamou, “fazeis meu coração quente; mas não podeis dar-me o que desejo. Eu esperarei aqui— esperarei até morrer. Ide!”

Ele cobriu o rosto com as mãos e se recusou a escutar; e quando olhou novamente para cima, elas eram duas estrelas cintilantes que desapareceram ao longe.

E a noite, tão longa, continuou.

Todos que deixam o vale da superstição passam pela terra da escuridão; mas alguns atravessam em poucos dias, outros se demoram por meses, outros por anos, e alguns ali perecem.

Afinal, o caçador avistou um brilho incerto no horizonte e ergueu-se para segui-lo; e ele alcançou essa luz, e adentrou a claridade do sol. Ali, diante de si erguiam-se as enormes montanhas dos Fatos e Realidades. O fulgor puro do sol irradiava sobre elas, e seus cumes se perdiam entre as nuvens. Do sopé, subiam muitas trilhas. O caçador soltou um grito exultante. Escolheu a trilha mais reta e começou a escalar; e as rochas e cumeeiras ecoavam sua canção. Haviam, afinal, exagerado; não era tão alto assim, nem o caminho era íngreme! Alguns dias, algumas semanas, alguns meses no máximo, e então o cume! Não seria apenas uma pena que ele recolheria; ele juntaria todas as que outros homens já haviam recolhido— teceria a rede— capturaria Verdade— a teria em seus braços— a tocaria com suas mãos— a abraçaria!

Ele riu-se à luz do sol, e cantou alegremente. A vitória estava próxima. Não obstante, depois de um tempo o caminho se tornou mais íngreme. Ele necessitou de todo seu fôlego para escalar, e a cantoria cessou. Por todo lado surgiam rochas imensas, sem qualquer traço de líquens ou musgo, e a terra árida se fendia em formidáveis abismos. Aqui e ali ele avistava o reflexo de ossos brancos. A trilha gradativamente se tornava mais indistinta; mais como um rastro, a marca de uma pegada aqui e ali; até que desapareceu por completo. Ele não mais cantava, mas traçava um caminho por si mesmo, até que alcançou uma temível parede de rocha, lisa e ininterrupta, estendendo-se até onde a vista alcançava. “Vou erigir escadas na face da rocha; e, quando tiver escalado, estarei quase lá,” ele disse corajosamente; e pôs-se a trabalhar. Com sua lançadeira da Imaginação ele esculpiu pedras; mas metade delas não se encaixava, e meio mês de trabalho desabava porque as pedras de baixo haviam sido uma má escolha. Mas o caçador continuava, e repetia para si mesmo, “Assim que escalar a parede, estarei quase lá. Essa grande obra terminará!”

Afinal ele alcançou o cume, e olhou ao redor. Lá embaixo giravam as névoas dos vales da superstição, e acima dele avultavam-se as montanhas. Antes tinham parecido baixas; agora eram de altura imensurável, do topo à base cercadas de paredes rochosas, que se erguiam fileira após fileira em grandes círculos. Nelas brilhava o sol eterno. Ele soltou um grito selvagem. Dobrou-se sobre a terra, e quando se ergueu, seu rosto estava pálido. Em absoluto silêncio continuou a caminhar. Estava muito quieto agora. Nessas regiões altas, o ar rarefeito é difícil de respirar para aqueles nascidos nos vales; cada inspiração lhe doía, e o sangue escorria das pontas de seus dedos. Diante da próxima parede rochosa pôs-se a trabalhar. A altura dessa parecia infinita, e ele nada disse. O som de sua ferramenta ecoava dia e noite pelas rochas férreas em que esculpia degraus. Anos se passaram sobre ele, e ainda ele trabalhava; mas a parede avultava-se sempre acima dele até os céus. Às vezes ele rezava que um musguinho ou líquen crescesse nas paredes nuas para lhe fazer companhia; mas nenhum nunca apareceu.

E os anos se passavam; ele os contava pelos degraus que havia esculpido— alguns por ano— apenas alguns poucos por ano. Não mais cantava; não mais dizia “farei isso ou aquilo”— apenas trabalhava. E à noite, quando o crepúsculo se instaurava, estranhas faces o espiavam por entre as frestas das rochas.

“Largue teu trabalho, homem solitário, e fale conosco,” elas chamavam.

“Minha salvação está no trabalho, se parar por um só momento seria subjugado por vós,” ele respondia. E elas o espiavam com mais intensidade.

“Olhe para as frestas aos teus pés,” elas diziam. “Veja o que jaz ali— brancos ossos! Um homem tão corajoso e forte quanto tu, escalou essas rochas.” E ele olhava para cima. Percebeu que era fútil resistir; ele nunca possuiria Verdade, nunca a veria, nunca a encontraria. Assim, jazeu ali, pois estava muito cansado. Foi dormir para sempre. Pôs a si mesmo para dormir. Dormir é muito sereno. Não se está só quando se está dormindo, e nem suas mãos nem seu coração doem. E o caçador riu por entre os dentes.

“Terei eu arrancado de meu coração tudo que amava; terei eu caminhado sozinho pela terra da escuridão; terei eu resistido à tentação; terei eu habitado onde a voz da minha gente nunca foi ouvida, e trabalhado só, para jazer aqui e ser devorado, suas harpias?”

Ele riu-se intrepidamente; e os Ecos do Desespero esgueiraram-se para longe, pois o riso de um coração destemido e forte é como golpe mortal para eles.

Ainda assim, puseram-se para fora novamente e olharam para ele.

“Sabes que teus cabelos estão brancos?” disseram, “que tuas mãos começam a tremer feito as de uma criança? Vês que a ponta de tua lançadeira se acabou?— já está rachando. Se tu subires estes degraus,” disseram, “serão teus últimos. Nunca mais subirá outros.”

E ele respondeu, “eu sei disso!” e continuou a trabalhar.

As mãos, velhas e frágeis, esculpiam as pedras mal e tortamente, pois os dedos estavam rígidos e retorcidos. A beleza e a força do homem haviam se acabado.

Por fim, uma face anciã, sábia, enrugada avistou por cima das rochas. Viu as montanhas eternas se elevarem em paredes até as alvas nuvens; mas seu trabalho estava feito.

O velho caçador entrelaçou as mãos cansadas e deitou-se à beira do precipício onde havia labutado toda vida. Era chegada a hora de dormir. Abaixo dele, sobre os vales deslizava o espesso nevoeiro branco. Em um momento, dispersou-se; e nesse hiato os olhos moribundos avistaram as árvores e campos de sua meninez. De tão longe pareciam trazer-lhe o canto de seus próprios pássaros selvagens, e pôde ouvir as pessoas cantando enquanto eles dançavam. E pensou ouvir as vozes de seus antigos camaradas; e viu de tão longe o sol brilhar em sua casa ancestral. E lágrimas ajuntaram-se nos olhos do caçador.

“Ah” Aqueles que morrem lá não morrem sós,” ele chorou.

Depois o nevoeiro se adensou novamente; e ele afastou os olhos.

“Eu busquei,” ele disse, “por longos anos labutei; mas não a encontrei. Não descansei, não lamentei, e não a vi; agora minhas forças se acabam. Onde eu jazo exausto outros homens se erguerão, jovens e potentes. Pelos degraus que esculpi eles subirão; pelas escadas que construí eles escalarão. Eles nunca saberão o nome do homem que as fez. Do trabalho canhestro eles rirão; quando as pedras rolarem me xingarão. Mas escalarão, pelo meu trabalho; subirão, e pela minha escada! Elas a encontrarão, e pela minha mão! E nenhum homem vive por si e nenhum homem morre por si.”

As lágrimas escorreram de sob as pálpebras enrugadas. Se Verdade tivesse surgido acima dele nas nuvens, naquele momento não a veria, a névoa da morte estava em seus olhos.

“Minha alma escuta seus passos animados,” ele disse, “e eles subirão! Subirão!” Ele ergueu sua mão enrugada aos olhos.

E então, lentamente, do alvo firmamento, pela calmaria, algo veio caindo, caindo, caindo. Suavemente rodopiou e assentou-se no peito do homem moribundo. Ele sentiu em suas mãos. Era uma pena. Morreu segurando-a.

Referência do conto em inglês

SCHREINER, O. The hunter. In: SCHREINER, O. Dreams. Urbana, Illinois: Project Gutenberg, 1998. Disponível em: https://gutenberg.org/ebooks/1439.

Primeira publicação – como parte do capítulo 2.II de The story of an African farm (1883).

Um comentário sobre a tradução

Essa tradução foi iniciada em março de 2022 como parte de uma disciplina de graduação sobre prática de tradução, integrada à minha pesquisa de iniciação científica; e concluída por volta de novembro de 2022 como parte dos trabalhos de conclusão de curso da minha licenciatura. Em setembro de 2023, já no mestrado, fiz uma revisão final do texto.

O caçador não foi uma alegoria difícil de traduzir, e apresentou poucos impasses. Logo no início tomei a decisão de usar o pronome “seu” para a terceira pessoa, e “teu” para segunda pessoa, evidenciando a distância da linguagem cotidiana, em que essas regras não são rígidas.

 

O único impasse sem solução se apresentou nos parágrafos finais, em que o Caçador diz: “And no man liveth to himself and no man dieth to himself.” Os verbos estão no presente do indicativo, conjugados na terceira pessoa arcaica “thou”; mas como português não tem uma conjugação arcaica equivalente, a frase ficou “E nenhum homem vive por si e nenhum homem morre por si.” Lamentavelmente prosaico, em comparação à escolha estilística de Schreiner.

Mª Lua Albus, 2023


The hunter é uma obra em Domínio Público. Essa tradução foi realizada como parte de projetos de pesquisa financiados pelo CNPq e pela CAPES. Nenhum ganho financeiro ou material foi obtido através dessa tradução. A obra traduzida e respectivo comentário sobre a tradução podem ser compartilhados e adaptados sob os termos da licença Atribuição-Compartilha-Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

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